Os jogos esquecidos da FromSoftware

Antes de Dark Souls e Sekiro: Shadows Die Twice, a FromSoftware era um estúdio completamente diferente. De certeza que já conhecem a sua história e origens no desenvolvimento de software de produtividade, que deu assim origem ao seu nome – literalmente “vieram do software” –, com a produtora japonesa a dar o salto para o mundo dos videojogos com a chegada da PlayStation original, iniciando aquele que viria a ser um percurso marcado pelo experimentalismo, pela liberdade e por uma veia artística que poucos estúdios, especialmente os ocidentais, alguma vez ambicionaram ter. Arrisco-me a dizer que a FromSoftware é uma representação da obra de Takashi Miike nos videojogos, no sentido em que tanto criou projetos comerciais (Mobile Suit Gundam Unicorn), como infantis (The Adventures of Cookie & Cream) ou pura e simplesmente doentios (Kuon).

A sua recente popularidade, liderada por Hidetaka Miyazaki, que assumiu a presidência do estúdio em 2014, esconde um passado de riscos e de percalços, onde o título “um projeto da FromSoftware” não fazia virar cabeças, mas sim questionar sobre qual seria a sua qualidade. Para todos os efeitos, a FromSoftware era a produtora que fazia imitações de outras séries, mas por um preço reduzido, ainda que adicionando sempre uma mecânica ou ideia diferentes da norma. Não eram, por assim dizer, um estúdio com um estilo fixo ou com uma identidade muito afincada, a não ser na estranheza e na arbitrariedade de alguns dos seus projetos. Depois de Dark Souls, cimentou-se a identidade e perdeu-se a loucura.

A FromSoftware é das poucas produtoras que se questionou sobre o que aconteceria se alguém tivesse uma arma automática num ambiente de fantasia.

É delicioso conhecer o catálogo pré-Demon’s Souls e perceber como os videojogos se encaixam no grande esquema da FromSoftware, onde existem quase sempre influências que se fazem sentir ainda hoje nos seus projetos. É uma pena, portanto, saber que muitos destes videojogos estão perdidos no tempo, esquecidos ou até nunca reconhecidos pela maioria dos jogadores, exceto algumas exceções, claro. Motivado pelo excelente vídeo de ThorHighHeels, quis descobrir por mim alguns dos seus clássicos de culto e partilhar a viagem convosco.

Lost Kingdoms

É incrível como o sistema de cartas, apesar das suas mecânicas de nicho, continua a ser tão preponderante na indústria dos videojogos. Não conheço, admito, a sua origem, ainda que imagine que exista um antes e um depois da estreia de Magic the Gathering, mas nunca deixa de ser empolgante reconhecer como os estúdios abordam e adaptam os seus sistemas para os mais variados géneros – olhem, por exemplo, para Neon White, um jogo de ação na primeira pessoa que foi recentemente anunciado para PC e Nintendo Switch.

Os combates funcionam como arenas e as cartas têm um número fixo de utilizações, motivando assim os jogadores a alternarem entre monstros para criarem mais situações estratégias sem dependerem de um leque de cartas específico.

Em Lost Kingdoms, naquele que foi um dos primeiros RPGs da GameCube, a FromSoftware decidiu responder à pergunta que ninguém fez: como seria um jogo de cartas da FromSoftware? A resposta, aparentemente, foi um título perdido entre um sistema de combate em tempo real, mas com cartas e um RPG básico com combates aleatórios e uma estrutura por zonas. É bizarro, pouco ou nada atraente, mas ainda assim apresenta alguns pontos interessantes, como a personificação das cartas em monstros que utilizamos em combate e a sua evolução ao longo dos combates. É funcional, ainda que lhe falte uma mira automática e uma maior liberdade de movimentos (algo que, pelo que percebi, foram implementados na sequela).

Estamos a falar de um jogo que precedeu Baten Kaitos, um dos RPGs mais populares da consola, por um ano (ou três na Europa). Havia muito para limar, mas adoro o facto da FromSoftware marcar presença na sexta geração de consolas de rompante com Evergrace e Lost Kingdoms, como se se tratasse de uma afirmação anti tédio. Faltou-lhe ser um bom jogo, de B grande, mas as ideias estão lá e é sempre interessante ver esta bizarria no seu catálogo. Além disso, a banda sonora foi composta por Kota Hoshino. Isto é razão suficiente para jogarem.

Eternal Ring

De certeza que perceberam que fui muito seletivo ao falar nos títulos de lançamento produzidos pela FromSoftware. A produtora acompanhou, ao longo de várias gerações, a chegada de novas consolas às lojas com RPGs e jogos mais experimentais. Evergrace e Lost Kingdoms não foram os únicos a marcarem presença no lançamento da PS2 e GameCube, respetivamente, mas também Armored Core 2 e o jogo que nos traz aqui: Eternal Ring. Para todos os efeitos, este exclusivo da PS2 é um King’s Field, mas sob o efeito de esteroides, focando-se na mesma experiência na primeira pessoa da série da FromSoftware, mas apostando num movimento mais rápido e em níveis mais estruturados, existindo ainda uma certa linearidade neste mundo de magia e monstros.

Eternal Ring não é uma mudança eficaz na fórmula de King’s Field e nem tenta ser. É, isso sim, uma jogada segura e um teste para cimentar o que viriam a ser King’s Field IV: The Ancient City e Shadow Tower Abyss. De facto, Eternal Ring é mais fácil que os seus antecessores, tem um sistema de evolução muito intuitivo e clássico (funcionando por níveis, sem grandes opções de personalização), e foca-se antes na utilização de magias e de anéis que podem combinar e criar ao longo da campanha. E sabem qual é a particularidade mais estranha deste jogo? De todos os jogos da FromSoftware, que foram lançados durante a sexta geração, Eternal Ring foi o único lançado na PS4, ainda que só nos Estados Unidos da América e no Japão. E mesmo assim, é esquecido ou pouco associado à produtora de Dark Souls.

Tenho, no entanto, de destacar que a FromSoftware sempre foi excelente na criação de ambiente e no design visual dos seus jogos.

Spriggan: Lunar Verse

Foquemo-nos, por fim, no seu lado mais comercial. Nos seus Zebraman e Phoenix Wright, por assim dizer – e alimentando a minha comparação algo descabida ao cineasta Takashi Miike –, e nas adaptações inesperadas que a FromSoftware produziu ao longo dos anos. Como seria de esperar, a produtora nem sempre teve acesso a algumas das maiores séries do mundo dos animes e mangas (à exceção de Gundam), mas conseguiu garantir os direitos de adaptação de Spriggan, um filme, lançado em 1998 (ainda que exista também um manga), que pensava estar esquecido no tempo. No entanto, não podia estar mais errado e não só goza de alguma popularidade em certas comunidades, como receberá este ano uma adaptação pela Netflix. Este mundo não me deixa de surpreender!

A adaptação, Spriggan: Lunar Verse, é um monstro por si só. Um jogo de ação e aventura focado num sistema de combate tão rígido e datado que mais parece que controlamos um tanque do que um super soldado. Os golpes são lentos, as combinações nem sempre satisfazem, mas existe aqui um charme nostálgico que me faz apreciar as suas ideias. Infelizmente, não pude avançar muito porque é um exclusivo japonês, preso para todo o sempre na PlayStation e sem uma tradução feita por fãs, e ainda não ganhei a habilidade de ler e compreender línguas que… não consigo ler nem compreender. No entanto, os gráficos têm charme, os modelos são definidos e o design da UI é nostálgico e altamente estilizado, mantendo uma aposta no minimalismo que tanto associo a esta era dos videojogos.

Poesia.

E, como não poderia deixar de mencionar, a banda sonora é das coisas mais loucas e empolgantes que poderão ouvir na consola da Sony. Não foi composta, infelizmente, por Kota Hoshino, mas por Keiichiro Segawa, Tsukasa Saitoh e Yuji Kanda, ainda que mantenha o estilo quase DIY dos seus trabalhos. É, acima de tudo, uma lição em como criar faixas de percussão sem ter nenhuma preocupação com tom, ritmo e decência musical. O que é, diga-se, brilhante. Apesar das minhas piadas fáceis, posso dizer que adoro genuinamente este estilo irreverente das composições da FromSoftware e são, juntamente com as mecânicas mais inesperadas, um dos componentes que a tornam numa das produtoras mais interessantes da indústria dos videojogos.

Ficámos com muito por falar, mas quis começar por destacar alguns dos títulos mais esquecidos na história da FromSoftware. Existem séries que marcaram, direta ou indiretamente, alguns géneros e gerações de consolas, como Echo Night e o já mencionado King’s Field, outros criaram quase um estilo por si só, onde podemos inserir a série Armored Core e a sua aposta em combates frenéticos e na personalização de robots gigantescos, mas há sempre algo que une as produções do estúdio: a vontade de serem diferentes. O caminho até à ribalta não foi fácil, mas é bom ver como a FromSoftware se transformou em 34 anos. Que venha o futuro!

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